Eldorado de ilusões
Serra da Carnaíba concentra o desejo por riqueza e a desgraça inerente ao garimpo
Carnaíba de Cima, um distrito da cidade de Pindobaçu, não passa da geometria de meia dúzia de ruas, coalhadas de pequenos estabelecimentos comerciais, com aspecto de sujeira aos olhos de um urbanista de metrópole, casas erguidas com rocha e entulho e uma movimentação de feira. É o comércio da pedra verde, uma imposição local do mesmo jeito que você vai encontrar ambulantes oferecendo fitas do Senhor do Bonfim na Colina Sagrada, ou casas de chá seduzindo clientes por chocolate em Gramado. A diferença é que, estando ali, você já é tratado como comprador compulsório, não há chance de você estar apenas passeando. “Venha ver essa belezura, olhe que pedra maravilhosa”, adianta-se um dos quatro que debatem calorosamente sobre o valor de suas chamejantes pepitas.
O outro já puxa o jovem com máquina fotográfica na mão e aspecto geral de turista. Tenta convencer que R$300 é uma bagatela para aquela preciosidade. Não precisa muito para o quarteto disputar entre si as qualidades de suas peças, suas bolinhas brutas que podem muito bem ter sido refugo do garimpo, mas que aos olhos do leigo viram oportunidade.
Na Carnaíba, cada porta expõe uma miudeza que remete ao trabalho nas minas, embora os microempresários não tenham lucros a contabilizar. Todos dizem que a fase não é das melhores, que já foi o tempo do dinheiro e os “serviços” parecem estar secando. Só que no momento de ostentação, André Lopes, o Dezo, mais vaidoso do que a média, deixa passar que vende até R$10 mil em uma semana.
Naquele entre muitos botecos sem placa de nome, resumido a uma porta e um vão pintado em azul desbotado, com paredes adornadas por três ou quatro cartazes de cerveja com mulheres seminuas que nunca vão passar por ali (nem ao menos se um sortudo da mina pagar o peso delas em ouro), a proprietária, dona Maria, com seus 60 anos, oferece uísque para combater o frio que se aproxima. Para ela, a melhor marca é “aquela segunda garrafa da primeira prateleira”, apontando para um vidro escrito Old Eight. Dona Maria está feliz, mesmo com o cliente pedindo nada mais do que uma cerveja. Afinal, é um cliente, coisa quase tão rara por ali, quanto a moça de biquíni e sorriso branco no cartaz de cerveja.
Na despedida, uma pergunta ao garçom:– O comércio aqui está bom?– Pra cachaça, não tá ruim, não.Ele ainda completa, com a franqueza de um taquígrafo de tribunal: “Garimpeiro gosta de tomar um porrezinho de vez em quando”.
Riqueza e desgraça
Garimpeiro é uma expressão genérica para designar operários das minas que se estendem por toda a serra, pontilhadas por buraquinhos que servem como porta de entrada para a riqueza ou a desgraça. No dicionário Aurélio, a primeira definição: “aquele que anda à cata de metais ou pedras preciosas”. Na gramática popular da Carnaíba, garimpeiro tem muitos significados. Pode ser o miserável que já ficou rico e agora corre contra o tempo para recuperar um pouco do dinheiro gasto em orgias etílicas, ou pode ser o pai de família que luta contra o tempo para levar o leite que Samuel Adrian vai precisar beber até o fim dos próximos parágrafos. Ou pode ser uma mistura das duas coisas.
Mas não é preciso recorrer a nenhum tipo de semântica para descobrir o significado de garimpeiro. Basta passear os olhos pelas ruas empoeiradas neste sábado interminável e ver homens de pele curtida, barba por fazer, capacetes sujos de uma tinta escura, roupa enlameada, botas de borracha encardidas até as canelas, passos apressados, e uma aparência de quem está mais em sintonia com a próxima detonação do que com a próxima refeição. Daquela vez, o estouro vai trazer pedra suficiente para garantir o alimento da família.
Estão sempre prontos a narrar a maldição da esmeralda, um inescapável destino aos que são bafejados pelo hálito da riqueza instantânea. Eles ficam milionários na rapidez com que dizem “essa mina é meu tesouro”, e podem ficar arruinados na velocidade que oferecem uma rodada do melhor uísque na melhor boate de Copacabana. Os garimpeiros são perdulários sem culpa e vivem pelo momento exato e, muitas vezes, único, em que conseguem escalar o ponto mais alto de uma sofrível restrição financeira, para depois descerem ao abismo da miséria com a competência de um medalhista olímpico em saltos ornamentais.
Falam sem remorsos aparentes, embora sempre estejam prometendo que na próxima oportunidade vão agir diferente, serão precavidos e previdentes. Só que estão falando para convencer a si mesmos. É possível que repitam tudo de novo, embora o mais provável seja que não tenham outra chance.
O ciclo de pujanças e falências é uma espécie de virose coletiva contra a qual ainda não inventaram uma vacina eficaz no garimpo. Funciona como nos tempos mais agudos das endemias de caxumba, quando se você não tivesse contraído pelo menos conhecia um vizinho que já teve. Nisso, veteranos e novatos são iguais sob o manto fantasmagórico da maldição. “Quem não faz dinheiro nesse garimpo?”, indaga retoricamente Emerson da Silva Vasconcelos, com mais da metade dos seus 19 anos gotejando suor naquela serra. E logo em seguida ele parece responder a si próprio com a lógica mais fácil de ser entendida em toda a Carnaíba. “A questão é que garimpeiro não segura dinheiro”.
Em menos de duas décadas de vida, Emerson já sentiu os dedos roçando em bolinhos de cédulas com ararinhas-azuis, R$5 mil, R$10 mil,passando por seus bolsos e sendo rapidamente investidos na indústria do hedonismo fácil: mulheres e bebidas. “Pode estar comendo ovo frito hoje, mas tem que curtir a vida”, empolga-se o rapaz, como se estivesse recriando o princípio do carpe diem em uma linguagem acessível a todos os vizinhos.
Na superfície
Um mundo subterrâneo é o escritório diário de centenas de trabalhadores com rostos sujos de fuligem, os narizes mal cobertos por pedaços de pano para minimizar a aspiração de pó, as cabeças apontadas para o inesperado. O que eles aparentam de rudes ao longe (com seus bonés em frangalhos e suas ferramentas pesadas para demolição), desmentem com a acolhida amistosa de operários da dureza. Parecem ter um orgulho da profissão e sentem um prazer genuíno de explicar cada etapa, cada instrumento, cada atalho para chegar ao brilho verde.
Ele não está ao alcance dos olhos, embaixo de toneladas de rocha, escondido por séculos de formações geológicas. Mais do que um prêmio para os sortudos, é um tesouro prometido para os desbravadores. E eles iniciam sua saga amarrando-se a um cinto de borracha sustentado por um cabo de aço e uma tábua, que chamam de “cavalo”. “Na hora que a gente monta no cavalo já está arriscando a vida”, dramatiza Elton Araújo Santos, sobrevivente há 15 anos dessa viagem ao centro da rocha, 28 anos de idade. Nos últimos dois anos, toda vez que ele desce vai pensando na jóia preciosa de sua própria lavra: Samuel Adrian.
E tudo é pedra e Samuel Adrian ao redor do esguio Elton, um compenetrado operário que o senso comum descreveria como sarará. É um dos autônomos do garimpo, que ganha exclusivamente o que consegue extrair. Outros colegas trabalham para o concessionário da mina, muitas vezes recebendo entre R$40 e R$50 por semana. Elton, que começou criança, catando o bagulho, tem experiência suficiente para sobreviver com a independência de aventureiro solo. Neste momento, ele está aguardando a subida de um colega da gruna (o nome dado ao túnel escavado) para receber um martelo, não a ferramenta tradicional, mas um instrumento que auxilia na perfuração da rocha para a conseqüente explosão.
Estopins da morte
São cinco a seis detonações em um dia. O martelo é uma espécie de britadeira para abrir fendas onde pequenas quantidades de explosivos são colocadas. O procedimento não obedece a padrões rígidos de segurança e o risco de acidentes é uma bomba-relógio sem cronômetro pra disparar. Encaixam a banana de dinamite com alguns sacos de geladinho cheios de areia para fixar o explosivo. Colocam a espoleta e o estopim. Eles, os combatentes, se afastam o suficiente para não receber o impacto do entulho e nem rezam mais para tudo dar certo. Quando uma pedra grande cai, logo é chamada de boi. Cuidado com este boi grande aí; desafiar o fatídico já é automático.
Em 1969, seis anos depois do início da exploração de minérios na região, a fatalidade agiu mais rápido do que o instinto de sobrevivência. Na manhã de 19 de julho daquele ano, o luto dominou a serra com o primeiro desmoronamento registrado no garimpo. Era um sábado e o serviço de Mário Ferreira de Araújo, no primeiro trecho da Carnaíba, ficou totalmente soterrado. Os mortos chegaram a nove, número que não foi registrado em estatísticas oficiais, mas terminou noticiado à época do deslizamento.
O acidente fatal, atribuído aos métodos artesanais empregados na extração, não afastou os trabalhadores. Naquele mesmo ano, uma mina na região da Marota, às margens da estrada para o município de Pindobaçu, mostrou-se a jazida dos sonhos. Uma pedra de esmeralda com mais de cinco quilos foi descoberta e tornou o local famoso no mundo todo. A avidez terminou vencendo o sinistro.
Elton agora tem seu martelo e vai invadir a mina. Há quase dois anos é um homem convertido para uma religião evangélica por influência da mulher, Arenildes. De vez em quando, ele pensa que se tivesse descoberto essa forma de ocupação da vida pela adoração religiosa não teria gasto os R$200 mil que calcula já ter colhido em preciosidades e desperdiçado em prazeres profanos. “Deus abriu meus olhos e vi que este mundo não tem nada a oferecer”, profetiza ele, que lá na frente vai lançar uma frase que não é praga, mas constatação: “O garimpeiro é sofredor, mas quando Deus mostra a bênção pra ele, não está preparado”.
Ele está pronto agora para voltar ao seu altar de umidade e penumbras. Como os corredores olímpicos contam suas vidas em segundos e os detentos por crimes hediondos contam seus tempos em anos, Elton precisa regular sua vida por semanas. Às sextas, tem a feira em Carnaíba e ele precisa garantir o leite do pequeno Samuel Adrian. Isso significa seis ou sete dias para vencer sua competição. Elton sonha com a família indissolúvel e para isso tudo depende do seu sucesso capaz de dissipar qualquer risco no matrimônio. O leite da casa já foi garantido nesta semana, na próxima não se sabe se vai haver sufoco, tudo parece depender de uma martelada certeira.
É por isso que Elton caminha cercado de pedras de uma solidez evidente e da presença impalpável do pequeno Samuel Adrian.
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