domingo, 21 de outubro de 2007

Quem corre para a praia mais próxima todo santo feriado pode não imaginar, mas foram necessários milhões de anos de evolução para que a humanidade finalmente conseguisse colonizar os ambientes costeiros do nosso planeta. Uma equipe internacional de pesquisadores acaba de mapear o que parece ser o primeiro passo dessa odisséia: uma caverna da costa da África do Sul que foi ocupada há 164 mil anos pelos mais antigos "ratos de praia" da pré-história.

E mais: os pesquisadores também acharam restos de ferramentas completas e pigmentos minerais provavelmente usados para pintar o corpo e, quem sabe, as paredes da caverna. São indícios de uma mente relativamente sofisticada, capaz de conceber relações simbólicas -- capacidade que, para a maioria dos antropólogos, só teria aparecido dezenas de milhares de anos mais tarde entre nossos ancestrais.

"O legal da ciência é que algumas idéias podem ser testadas e falsificadas, ou seja, derrubadas, se não estiverem de acordo com os fatos", disse ao G1 o americano Curtis Marean, da Escola de Evolução Humana e Mudanças Sociais da Universidade do Estado do Arizona. "Bom, a idéia de que toda a complexidade comportamental humana apareceu de uma vez só há apenas 50 mil anos está derrubada, e nossos achados são uma nova prova disso", afirma o pesquisador, que coordenou a pesquisa que está na edição desta semana da revista científica
"Nature".


The Mossel Bay Archaeology Project/Divulgação

A pesquisa de Marean e companhia é uma janela preciosa numa época durante a qual indivíduos fisicamente quase idênticos ao Homo sapiens atual já andavam pelo mundo. Ao que tudo indica, nossa espécie tem cerca de 200 mil anos de idade, mas esses primeiros humanos biologicamente modernos estranhamente eram, bem, um pouco menos que humanos, a julgar pelos traços de seu comportamento que chegaram até nós.

Explica-se: até hoje, praticamente não há indícios de ferramentas complexas (ou compostas de materiais que não sejam pedra ou madeira), arte, capacidade de entender o mundo com a ajuda de símbolos, linguagem e ocupação de áreas costeiras antes de, pelo menos, uns 100 mil anos atrás. É como se os primeiros Homo sapiens tivessem "demorado a engrenar" social e culturalmente.

Daí a importância dos achados de Marean e companhia. A caverna que eles escavaram fica perto do oceano Índico, numa região conhecida como Pinnacle Point pelos sul-africanos. Apesar de ficar perto do oceano, o lugar é relativamente alto, o que ajudou a protegê-lo das flutuações do nível do mar nas últimas centenas de milhares de anos -- do contrário, os restos desencavados teriam sido levados pelas ondas.

E os restos são um bocado significativos. A começar, por exemplo, de uma variedade considerável de espécies de mariscos e outros moluscos marinhos -- sim, esses humanos antigos aparentemente apreciavam frutos do mar, ao contrário de seus ancestrais, que só utilizavam recursos alimentares terrestres.

"Por que demoramos tanto para ocupar zonas costeiras? É uma ótima pergunta, e não sei se tenho a resposta", pondera Marean. Parte do problema, diz o cientista, pode ser o sumiço de sítios arqueológicos mais antigos e mais baixos, tragados pela elevação do nível do mar. Mas, para ele, o problema central pode ser outro -- a dificuldade natural de um primata acostumado com o interior de encarar o oceano e seus perigos e oportunidades.

Haja coragem
"Jonathan Swift, autor de 'As Viagens de Gulliver' tem uma frase engraçada. Ele diz que o primeiro homem a ver uma ostra como fonte de alimento só podia ser alguém muito corajoso", brinca Marean. Aliás, algumas das espécies de marisco são, na verdade, parasitas de baleias -- o que significa que os humanos, ou talvez humanas, de Pinnacle Point chegaram a se aproveitar até do cadáver dos grandes mamíferos marinhos para obter seus frutos do mar. Há também indícios de ferramentas de pedra extremamente delicadas, com lâminas de poucos milímetros de espessura de quartzo -- normalmente só encontradas muitos milênios depois.

O mais intrigante, no entanto, é o uso aparentemente abundante de ocre, um pigmento mineral avermelhado que teria muito futuro durante o florescimento cultural do Homo sapiens no fim da Era do Gelo. É verdade que o ocre também poderia ser usado como adesivo, para fixar pontas de pedra a cabos de madeira, mas a escolha das pedras mais avermelhadas para produzi-lo parece indicar que ele servia mesmo como pintura corporal.

Ora, isso é indício praticamente inequívoco de pensamento simbólico, dizem os pesquisadores. Se eles estiverem certos, a caverna sul-africana pode ser um dos primeiros degraus da escalada que acabaria transformando nossos ancestrais em humanos plenos.