domingo, 13 de julho de 2008

UNICAMP - SALA DA IMPRENSA

A corda e a caçamba

PAULO CESAR NASCIMENTO

No final do século passado, geólogos identificaram em rios no norte do Paraná concentrações de flúor acima da média. Após a descoberta, uma campanha epidemiológica em mais de mil crianças da região constatou que 60% delas apresentavam diferentes graus de fluorose, doença causada pela ingestão de água com excesso de flúor, capaz de comprometer de maneira irreversível a formação da dentição e causar também deformação dos ossos da coluna. O fenômeno tinha origem natural: a água que abastecia a comunidade rural vinha de poços subterrâneos, onde estivera em contato prolongado com rochas ricas em flúor. Situações semelhantes, nem sempre causadas naturalmente, são fonte de pesquisa de uma área científica emergente, a geologia médica, que estuda as relações entre fatores geológicos e a qualidade da saúde humana. O tema, um dos dez escolhidos pela ONU para orientar e divulgar pesquisas geológicas no Ano Internacional da Terra, comemorado este ano, será abordado pela primeira vez em uma reunião da SBPC. A inclusão do tópico na pauta do encontro na Unicamp promete levantar uma questão que os geólogos brasileiros consideram estratégica para a saúde pública: a necessidade de implantação de um mapeamento geoquímico em todo o território nacional.
“O Brasil não dispõe de um levantamento da composição química de seu solo e de sua água, seja de rios ou de poços”, aponta Bernardino Ribeiro de Figueiredo, professor do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp e responsável pela conferência “Geologia médica: contaminação de solos e a saúde pública” no evento da SBPC. “Existem ações de mapeamento pontuais no Paraná, no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Pará e em Goiás, mas o País se ressente de um estudo mais sistemático de todo o seu território.”
Programa emperrado – Ele conta que, em 2003, profissionais e acadêmicos de várias instituições brasileiras foram signatários de um documento propondo ao Ministério de Minas e Energia a implantação de um programa de geoquímica ambiental e geologia médica para todo o País. Porém, lamenta Bernardino, a proposta nunca esteve entre as prioridades da instituição e, passados cinco anos, ainda não deslanchou. Segundo o docente, a reunião da SBPC – assim como o 44º Congresso Brasileiro de Geologia, em Curitiba, em outubro – oferece uma importante oportunidade de se colocar essa questão crucial na mesa de debates, para alertar a sociedade de sua importância e para cobrar providências por parte do Ministério.
“Além da exposição humana a substâncias tóxicas em áreas contaminadas, existem processos naturais em determinados locais que podem ser responsáveis pela prevalência de doenças, mas cuja relação não é conhecida. O mapeamento geoquímico tem o papel de revelar a existência ou não de uma conexão entre esses fatores geológicos naturais e efeitos adversos à saúde, trazendo à luz possíveis ameaças”, argumenta o pesquisador.
A extensa contaminação de solo e água por chumbo no Vale do Ribeira, em decorrência do refino industrial do metal, é emblemática do impacto causado no meio ambiente e na saúde populacional por uma atividade humana. O metal emitido pela indústria para a atmosfera depositou-se no solo e acabou por contaminar hortaliças e animais, como galinhas, consumidos pelos habitantes locais. Estudo conduzido na área por uma equipe multidisciplinar constituída de geólogos, químicos, toxicologistas, sanitaristas e médicos identificou níveis significativos de chumbo no sangue de moradores de duas comunidades mais próximas do local onde durante 50 anos funcionou a refinaria.
Água envenenada – Mas é um fator geológico natural, contudo, que pode expor populações inteiras a um dos elementos químicos mais perigosos para a saúde humana, o arsênio, embora a exposição também ocorra por meio de águas contaminadas por mineração ou pelo uso de pesticidas. Uma tragédia na década de 1980 revelou o risco para os cientistas: milhares de pessoas envenenaram-se em Bangladesh e em uma região da Índia pela ingestão prolongada de água subterrânea com concentrações excessivas de arsênio, capaz de causar câncer no pulmão, na bexiga e na pele. O líquido, consumido durante mais de duas décadas, estava em contato com uma rocha contendo um mineral chamado pirita, um sulfeto de ferro rico em arsênio, porém desconhecia-se esse fato.
Águas subterrâneas, observa Bernardino, são obtidas para consumo através da perfuração de poços artesianos e, em geral, tratadas de maneira muito expedita: quando muito recebem cloro para matar bactérias e não passam por uma análise química que poderia apontar eventuais riscos de intoxicação.
“É necessário, devido ao risco do arsênio e da presença de outros metais perigosos, conhecer a composição química das águas de poços, não raro consumidas diretamente, sem tratamento, até porque existe uma crença popular de que água de poço é água boa. Elas estão fora da rede de abastecimento e mais desprotegidas”, adverte o geólogo.
Ele defende a necessidade do mapeamento geológico em todos os estados brasileiros, até para que as pessoas despertem para ameaças que podem estar sofrendo quando bebem um simples copo de água que não foi quimicamente analisada. “Mostrar os possíveis efeitos adversos à saúde é papel da geologia médica”, destaca.
Investimentos – Para ele, o governo federal deve dar a necessária importância ao tema e reservar investimentos para o mapeamento geoquímico de todo o território nacional.
“O levantamento que revelou águas com concentrações altas de flúor no Paraná e, em decorrência disso, a existência de fluorose na população, é o exemplo de um trabalho de extrema relevância para a saúde pública que deveria ser estendido para todo o País”, salienta o especialista. “Isso nos permitiria identificar, em áreas pouco estudadas, em áreas remotas, peculiaridades e fatores desconhecidos que podem afetar a saúde pública, para o mal e para o bem.”
Para o bem? Sim, observa o pesquisador. Mapeamentos geológicos e geoquímicos do território nacional poderiam ajudar a identificar materiais benéficos para a saúde, como areias, rochas, lamas, águas radioativas e águas termais, entre outros, capazes de servir de matéria-prima para uma série de produtos que poderiam ser desenvolvidos pela indústria farmacêutica e de cosméticos.
“Isso está sendo feito em países como Inglaterra, Canadá, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia”, pondera Bernardino. Nesses, segundo ele, é muito mais fácil aproveitar o conhecimento geológico, que já estava avançado, para fins de geologia médica, também produzindo benefícios para a saúde humana.
Metais – O professor do IG também vê conexão entre o desmatamento da Amazônia e o aumento dos níveis de contaminação dos rios amazônicos por mercúrio, metal pesado altamente tóxico. Bernardino coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp e observa que a questão extrapola a muito bem conhecida relação entre atividades de garimpo (o mercúrio é empregado na separação do ouro e depois lançado nos rios) e a existência de vastas áreas contaminadas pelo metal.
Para ele, uma hipótese bastante plausível é a de que o solo amazônico foi contaminado pelo mercúrio emanado ao longo de milhares de anos de vulcões localizados nos Andes. O vulcanismo, salienta o docente, é um processo natural responsável pelo lançamento de quantidades enormes de mercúrio na atmosfera. Devido à sua volatilidade – basta lembrar que o mercúrio no estado natural é líquido, ao passo que outros metais são sólidos –, o metal pode ser transportado a grandes distâncias pela camada de gases que envolve a Terra e contaminar áreas longínquas.
“Acrescente-se a isso o fato de o solo da floresta amazônica ter a capacidade de reter mercúrio, já que é muito rico em ferro e em matéria orgânica, materiais propícios à retenção de metais em geral”, argumenta Bernardino.
Segundo ele, esse processo poderia explicar a existência de elevadas concentrações de mercúrio em águas e sedimentos de áreas amazônicas onde nunca existiu garimpo, como a Bacia do Rio Negro, conforme constatou pesquisa do professor Wilson Jardim, do Instituto de Química (IQ) da Unicamp. “Qual a origem desse mercúrio? A mais provável, vulcânica”, defende Bernardino.
Como o desmatamento expõe solos ao processo de erosão, os sedimentos naturalmente ricos em mercúrio acabarão indo para os rios, irão interagir com as águas e o metal contaminará peixes, que são a base da alimentação da população amazônica, raciocina o geólogo. No organismo humano, o produto, conforme a concentração, tem efeitos desastrosos para o sistema nervoso central e mata.
Ele, contudo, pondera que a relação entre desmatamento e contaminação ainda não foi formalmente investigada, mas precisaria ser incluída no rol das discussões a respeito das conseqüências do desmatamento da floresta.